Marajó tem rotina de violência sexual e gravidez precoce – 21/04/2024 – Cotidiano

Jornal Net Redação
por Jornal Net Redação
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Uma rotina silenciosa, com ares de normalidade para parte das pessoas que a vivenciam, preenche os dias e os espaços na porção ocidental do arquipélago do Marajó (Pará), na amazônia atlântica brasileira.

No Hospital Regional do Marajó, em Breves, a maior cidade do arquipélago, uma criança de 12 anos, grávida, é internada para o parto. Ela só deixou sua comunidade ribeirinha, que fica a horas e horas em um barco, quando a gravidez completou nove meses. O pai seria um primo, de 13 anos.

A poucos quilômetros do hospital, num bairro com casas de madeira suspensas em uma área de igarapé, duas primas de 14 anos serão mães em semanas. Uma será mãe solo. A outra deixou uma comunidade ribeirinha acompanhada do companheiro, um homem de 20 anos que obtém renda da coleta de açaí e da pesca tradicional de camarão.

Rios adentro, longe da área urbana, uma mãe se afeiçoa aos poucos ao filho de colo, depois de meses de resistência. Ela acaba de completar 18 anos. No ano passado, foi estuprada pelo próprio pai e ficou grávida, conforme a denúncia feita. O agressor fugiu. Na casa simples de madeira, na margem do rio, há alívio com a fuga.

Em Melgaço, a uma hora de lancha de Breves, um casal —uma menina de 14 anos e um homem de 25— procura o posto de saúde da cidade, conhecida por ter o pior IDH (índice de desenvolvimento humano) do país. Grávida, ela procura ajuda médica, com a mãe e o companheiro, para o início de um pré-natal.

Numa sala ao lado, mulheres que recebem Bolsa Família levam seus filhos para serem pesados. As famílias gastaram horas em embarcações até ali. Uma mulher tem 27 anos, oito filhos e está grávida. Outra mulher, aos 39, é mãe de 13. O mais velho tem 25 anos. O mais novinho, sete meses.

Esses recortes do cotidiano em espaços públicos no Marajó compõem uma realidade complexa, em que crianças e adolescentes são submetidas a violência sexual, ora com consentimento de familiares, em que se permitem os relacionamentos com homens adultos, ora por meio do emprego mais literal da violência.

O pano de fundo dessas vivências é a persistência da pobreza, que atinge 3 em 4 marajoaras na porção ocidental, e a inexistência de políticas e equipamentos públicos básicos, num lugar onde a vida é mais rural –o termo é usado pelas pessoas do lugar para se referirem às comunidades ribeirinhas– do que urbana.

O Estado não chega para quem vive nos rios, o que alimenta ciclos de violência sexual. A assistência que existe está voltada às cidades. Breves é metade rural. Melgaço, 78%.

O Conselho Tutelar de Breves, a Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente e a rede de assistência psicossocial não têm lanchas próprias para acesso às comunidades. O trabalho de campo dos conselheiros só ocorre quando há um empréstimo da lancha pela Polícia Militar ou quando a Prefeitura de Breves consegue a locação de um veículo.

Não há ambulatório para vítimas de violência sexual, a delegacia não funciona aos fins de semana, inexiste um serviço de acolhimento e hospedagem para adultos que acompanham crianças e adolescentes que passaram por um abuso sexual. Algumas cidades do arquipélago não têm abrigos para crianças, que precisam ser levadas a outros municípios.

Em Melgaço, unidades de saúde recebem crianças e adolescentes grávidas e não há comunicação de todos os casos ao Conselho Tutelar ou à polícia. Pela lei, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é um estupro de vulnerável. Em parte das situações, a própria família busca evitar esses comunicados, para não ver alguém próximo em situação de persecução penal.

Por dez dias, a Folha acompanhou a realidade do Marajó profundo, com um trabalho de reportagem feito nas áreas urbanas de Breves e Melgaço –que estão a até 14 horas de Belém em embarcações comerciais– e em comunidades e casas existentes no curso de quatro rios: Aramã, Mapuá, Mujirum e Tajapuru.

O jornal presenciou um dia de assistência do Conselho Tutelar e do Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) de Breves a duas vítimas de abusos sexuais em comunidades distantes da cidade. A viagem havia sido adiada em mais de uma semana por falta de lancha própria. Nesse período, uma das vítimas, de 9 anos, teria convivido com comentários jocosos na escola.

A exploração sexual infantil, que são os casos que envolvem vantagem financeira a adultos, persiste no Marajó, mas em escala inferior ao que já existiu, segundo todos os agentes, servidores e autoridades com quem a reportagem conversou.

O Conselho Tutelar de Breves registrou 23 casos de exploração sexual em três anos. O Creas tem dois casos em curso, relacionados a meninas exploradas em bares ou prostíbulos. Ainda existe a prática de acesso de crianças e adolescentes a balsas que trafegam por rios, como afirmam assistentes sociais do Creas, embora em quantidades muito menores do que no passado.

Em um relatório de setembro de 2023, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Lula (PT) apontou a existência de exploração sexual e disse que as dinâmicas desses crimes “não possuem correspondência nos dados oficiais de atendimento, resultando num quadro histórico e atual de subnotificação”.

A predominância, porém, é de violência sexual intrafamiliar ou intracomunitária, numa lógica que, muitas vezes, desafia o sistema de assistência social.

“Os casos de abuso são maioria”, diz Núbia Matos, que coordena o Creas de Breves. A unidade acompanha, com assistência psicossocial, 38 casos de abuso e dois de exploração sexual. Em fevereiro, a equipe recebeu cinco meninas grávidas após violência sexual. Há uma crônica subnotificação, pelas distâncias, isolamento e apagão de políticas públicas.

“Todo dia tem casos assim”, afirma o conselheiro tutelar Fernando Soares. “Tem muita violação de direito. Ainda assim, não é do tamanho e da forma que dizem.”

O conselheiro faz referência à exploração política e religiosa do problema, capitaneada por políticos de direita, como a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ministra de Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro (PL).

O método usado é divulgar situações absurdas de exploração sexual no arquipélago –não comprovadas pela ex-ministra e não confirmadas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público– para mobilização do eleitorado mais conservador. Em 2023, o MPF (Ministério Público Federal) moveu ação civil pública contra Damares em razão dos danos sociais e coletivos causados por suas falas.

O governo Lula considera um fracasso o programa Abrace o Marajó, lançado por Damares. A senadora defende a iniciativa. A atual gestão lançou um novo programa, Cidadania Marajó, com previsão de ações para enfrentar abuso e exploração sexual infantil.

O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, prometeu a aquisição de lanchas aos conselhos tutelares. Em Breves, isso ainda não ocorreu.

O ministério afirmou, em nota após a publicação da reportagem, que reformulou o programa de equipagem dos Conselhos Tutelares. As primeiras entregas de lanchas ocorrerão em maio, segundo a pasta. Serão contempladas 10 das 17 cidades do Marajó. Breves não está nessa primeira lista.

“Os problemas identificados no Marajó não são restritos àquele território. São violações de direito que podem ser identificadas em todo o país”, disse o ministério. “Quanto menor o acesso a políticas públicas de educação, saúde, acesso à terra, desenvolvimento, alimentação e água potável, mais vulnerável está a população a violações de direitos.”

O Cidadania Marajó reconhece os problemas, e o programa tem iniciativas de conscientização das vítimas sobre seus direitos, além de parcerias com governos locais e sociedade civil, afirmou a pasta.

O Governo do Pará disse, em nota, que todas as cidades do arquipélago têm embarcações e que Breves dispõe de cinco lanchas, das quais três estão numa base fluvial de segurança no distrito de Antônio Lemos. “As lanchas são de uso do sistema de segurança pública”, afirmou. Isso inclui atendimento de casos de violência sexual, cita a nota.

“Com base nos registros de ocorrência, a região do Marajó não se destaca com altos indicadores [de abuso sexual infantil], pelo contrário, segue o padrão do estado e do país”, disse o Governo do Pará. Há combate a crimes do tipo na região e ações de saúde e orientação à população, afirma a nota.

Um indicador levado em conta pelo Ministério dos Direitos Humanos, que pode denotar a reiteração de abusos, é o de gravidez entre crianças e adolescentes do Marajó.

Dos 50,1 mil bebês nascidos vivos no arquipélago de 2019 a 2022, 14 mil são de mães com até 19 anos. Isso significa uma taxa de gravidez na adolescência de 28%, segundo dados do Sinasc (Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos). No Pará, essa taxa é de 22,5%. No Brasil, de 14,5%, conforme o ministério.

Levando em conta mães marajoaras com até 14 anos, são 235 nascimentos por ano, em média, ou 20 bebês por mês.

Nos três primeiros meses de 2024, o Conselho Tutelar de Breves registrou 41 casos relacionados a violência sexual. É quase uma notificação a cada dois dias.

Os conselheiros andavam angustiados com uma denúncia recebida, principalmente pela impossibilidade de se deslocarem até a comunidade ribeirinha, por não terem uma lancha própria.

No último dia 9, em uma lancha arranjada pelo município, dois conselheiros e uma assistente do Creas conseguiram se deslocar a comunidades rurais para acompanharem dois casos.

O motivo central da viagem era uma denúncia de que um menino de nove anos foi abusado por um adulto com influência numa comunidade. A criança estaria sofrendo bullying na escola, relacionado ao suposto abuso.

Na escola, distante de 2 a 6 horas de barco, professores e coordenadores negaram a ocorrência de bullying. Era a primeira vez que recebiam conselheiros tutelares.

Na comunidade onde o menino vive, a mãe confirmou ter ouvido do filho o relato de abuso. E disse que foi desencorajada, por familiares do suposto agressor, a fazer uma denúncia.

Após afirmar que não procurou o conselho por não ter certeza, ela foi questionada por um dos conselheiros se o filho disse ter sido abusado. A mãe, então, confirma que ouvira o relato do filho.

Mãe e filho foram levados no barco a Breves, para conversas com uma psicóloga, depoimento à polícia e exames médicos. O paradeiro do suposto agressor era desconhecido.

No caminho de volta, a equipe parou em uma comunidade para acompanhamento do caso da jovem que denunciou estupro pelo pai. Ela carregava o filho no colo, e a maioria das perguntas foi respondida pela mãe, a avó do bebê.

A mãe disse ter aconselhado a filha, grávida outra vez, mas em vão. Sobre o marido, acusado de estuprar a filha, a mulher disse que ele sumiu.

Pros rumos de Melgaço, a rotina silenciosa de violações de direitos básicos preenche os dias nesse ponto preservado da amazônia brasileira, influenciado pelas marés.

Uma menina de 12 anos não voltou mais à escola em uma comunidade no rio Tajapuru após engravidar no ano passado. O pai seria um namorado, aceito pela família.

Há três meses, no posto de saúde da cidade, uma criança de 11 anos apareceu para o início de um pré-natal. Segundo profissionais da unidade, ela foi estuprada por um cunhado.



Fonte: Externa

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