O desenvolvimento saudável de uma criança geralmente é associado a uma boa nutrição, segurança e ausência de doenças. Mas não é só isso: o brincar, algo antigo e inerente aos animais, é igualmente essencial para a saúde infantil.
“Se você comparar uma criança que teve pais e cuidadores que faziam essas atividades com ela e uma criança que não teve, a discrepância de desenvolvimento delas é da ordem de 30%, o que é muito grande em nível de desenvolvimento infantil”, afirma Hermano Alexandre Lima Rocha, professor do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Segundo o pesquisador, a brincadeira estimula habilidades motoras, espaciais, sociais e emocionais. Quando sobe em uma árvore ou anda de bicicleta, por exemplo, uma criança trabalha não só a parte muscular do corpo, como também seu equilíbrio, sua coordenação motora e noções espaciais sobre distância e profundidade. Quando joga um quebra-cabeça, canta uma música ou brinca com pedrinhas, os pequenos também desenvolvem a capacidade de raciocínio lógico, habilidades em matemática e português.
“A gente sabe que a neuroplasticidade (capacidade de adaptação e aprendizagem do cérebro) é muito grande no início da vida e, através das brincadeiras, ela é muito ativada”, explica Liubiana Arantes de Araújo, presidente do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Enquanto as crianças brincam, seus neurônios vão formando conexões. Segundo Liubiana, isso significa que a criança está aprendendo uma habilidade. “E se é através do brincar, que é prazeroso, esse cérebro vai ser envolvido de hormônios do prazer e esse aprendizado então torna-se mais efetivo”, explica.
Diversão que faz bem para a mente
Além dos benefícios das próprias brincadeiras, a socialização que o brincar proporciona também tem efeitos positivos para o desenvolvimento da criança. Um estudo de pesquisadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, feito com com 1,7 mil meninas e meninos, identificou que crianças que brincavam com coleguinhas tiveram menores taxas de hiperatividade e problemas de conduta e menor risco de conflitos.
Os resultados mostraram que a socialização pela brincadeira durante a infância tem um efeito protetor na saúde mental, que foi percebido em poucos anos – o estudo analisou crianças aos três e aos sete anos de idade. Mas tudo isso também se reflete lá na frente, quando elas passam pela juventude e vida adulta, de acordo com Liubiana.
Por exemplo, brincar com os colegas ensina a respeitar o outro, trabalhar em equipe, saber discutir de forma inteligente, negociar, entender que a sua própria vontade não está acima da dos outros, que é preciso dividir tempo e espaço. É nesse contexto que as crianças aprendem a persistência, a tolerar as frustrações e a frear o desejo e focar em fazer o que é necessário.
“Isso treina habilidades emocionais que são importantes para a vida inteira – lidar com os problemas, com as decepções, com as perdas. Tudo que a gente lida na vida adulta, a gente aprendeu desde pequeno e as janelas de oportunidades no cérebro relacionadas às funções executivas, à saúde emocional e à resiliência são construídas pelo ambiente, pelas experiências que o cérebro recebe na infância”, explica. “É importante a diversão também, né? É importante a criança desenvolver isso para que ela seja feliz”.
Ela ainda ressalta que, atualmente, com famílias tendo menos filhos, as crianças não vivem esses momentos de brincadeiras entre irmãos, de forma que é necessário incentivar o contato com colegas de escola e do bairro, por exemplo. E, claro, brincar com os pais também faz parte de uma infância saudável.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), crianças que brincam regularmente com seus pais têm menos probabilidade de desenvolver ansiedade, depressão, comportamento agressivo e problemas de sono. Isso porque, além de fortalecer o vínculo familiar, a brincadeira também ajuda a criança a processar emoções, a construir confiança em si mesma e a reduzir os níveis de estresse.
Ainda que parte dos estudos na área sejam feitos com crianças dos países do norte global, a pesquisa de Hermano Rocha, da UFC, comprovou que na cultura brasileira os resultados também são válidos. “Descobrimos que os comportamentos parentais envolvendo brinquedos pareciam estar particularmente associados aos domínios do desenvolvimento infantil”, escreveram os autores no artigo. Entre estes domínios analisados, estavam comunicação, resolução de problemas e domínio pessoal-social.
E o uso das telas?
Embora os jogos virtuais sejam muito comuns na rotina das crianças atualmente, os especialistas entrevistados pelo Estadão não recomendam que eles substituam as brincadeiras ao vivo. Liubiana reforça as orientações de limite de tempo de tela para cada idade, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria:
- 0-2 anos: nada de telas;
- 2-5 anos: uma hora de tela por dia, somando TV, celular, computador, tablet e videogames;
- a partir dos 5 anos: duas horas de tela por dia, somando TV, celular, computador, tablet e videogames.
A especialista ressalta que, hoje, o mundo vive um excesso de jogos de violência e sexualização. Esse tipo de conteúdo não é adequado para crianças, que ainda não sabem diferenciar o que é realidade do que é ficção. Por isso, os pais devem estar atentos e no controle da situação caso permitam o acesso das crianças a esses tipos de jogos e também às brincadeiras online.
“Primeiro, você tem que respeitar a orientação de tempo de tela por idade; segundo, respeitar a classificação indicativa de cada jogo; terceiro, observar se os conteúdos têm violência, sexualidade, bullying. Se ela está jogando online, quais são as pessoas que estão no grupo?”, aponta. Ela sugere que os pais fiquem junto com as crianças, no ambiente em que elas estiverem jogando, para não fazerem isso fechados no quarto.
Para Rocha, pesquisador da UFC, há também outros malefícios dos jogos eletrônicos. “Nós temos um outro artigo que fala do tempo de tela e observa-se que talvez o pior não seja a tela em si, mas a perda da oportunidade de brincar com uma criança”, explica.
“Brincadeira mesmo é cara a cara, presencial. A brincadeira online já tem um outro sentido: uma criança não tá me olhando no olho, não tá percebendo a emoção, não tá vendo a expressão facial, a expressão corporal, muitas vezes não tá ouvindo a voz. Então perde-se muito da percepção real do outro ser”, explica Liubiana, da SBP.
Para aproveitar as férias
Não há idade certa para começar a brincar, mas é importante lembrar que há brincadeiras mais apropriadas para cada idade. Abaixo, veja algumas ideias:
Até um ano
De acordo com orientações da Unicef, crianças de dois meses podem se beneficiar de brincadeiras como:
- Cantar e apresentar sons, tocando nos pés do bebê no ritmo da música, incentiva a habilidade de escuta;
- Conversar, olhando nos olhos, para estimular habilidades de linguagem;
- Estimular o toque, entregando brinquedos, para incentivar o desenvolvimento do sistema motor fino.
Já os bebês de até quatro meses aproveitam as seguintes atividades:
- Contar histórias, apontando para imagens nos livros, para desenvolver habilidades visuais e o vínculo afetivo;
- Ligar e desligar luzes e torneiras, explicando o que está fazendo, para que os bebês comecem a entender a relação entre causa e efeito.
Por volta dos seis meses, a Unicef orienta:
- Incentivar o bebê a rolar, colocando os brinquedos a uma certa distância do alcance da criança para ela fortalecer os músculos;
- Explorar outros ambientes, apresentando novos sons e cenários, para ajudar no desenvolvimento das habilidades auditivas, visuais e sociais.
Segundo Rocha, o estudo do qual fez parte observou que as atividades que tiveram maior impacto positivo nessa idade foram aquelas com brinquedos que fazem sons, como um chocalho.
Entre 1 e 2 anos
Nessa idade, a criança precisa de estímulos para aprender palavras e para se movimentar – é a fase de descoberta do mundo. Algumas brincadeiras legais para o período são:
- Esconder e encontrar objetos;
- Repetição de palavras (como o nome dos objetos que a criança aponta);
- Jogos de encaixar.
Entre 2 e 3 anos
Nessa idade em que já andam, as crianças precisam de incentivo para desenvolver habilidades motoras e a criatividade, além de fortalecer o vínculo afetivo. Experimente:
- Incluir os pequenos na rotina doméstica, os envolvendo em tarefas simples e seguras;
- Estimular desenhos e pinturas;
- Montar e desmontar estruturas, como vários blocos que formam uma torre.
Entre 4 e 5 anos
A personalidade e gosto das crianças também começam a se formar nessa idade. Experimente:
- Brincar de pega-pega;
- Utilizar fantasias para que a criança se vista de maneiras diferentes;
- Nomear os sons que vocês ouvem.
Acima dos 6 anos
É o momento de fortalecer vínculos, desenvolver habilidades de raciocínio e comunicação. Experimente:
- Caça ao tesouro;
- Jogo da memória;
- Mímica;
- Quebra-cabeças;
- Ouvir música;
- Álbuns de figurinhas;
- Jogos de tabuleiro;
- Incentivar o contato com a natureza.