ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO* – “A teoria evolutiva da solidão de (John) Cacioppo está enraizada na observação de que os humanos sobreviveram como espécie não porque temos vantagens físicas como tamanho, força ou velocidade, mas por causa de nossa capacidade de nos conectar em grupos sociais. Nós trocamos ideias. Coordenamos objetivos. Compartilhamos informações e emoções”, escreveu o cirurgião-geral dos Estados Unidos, principal autoridade de saúde pública do país, Vivek Murthy, no livro Together: The Healing Power of Human Connection in a Sometimes Lonely World.
Essa teoria, que ganhou ainda mais força após a pandemia de covid-19, quando houve um boom de estudos na área, define a solidão como uma sinalização ou um estímulo para que atendamos a uma necessidade básica: a de nos conectar. “Assim temos uma maior chance de adaptação ao nosso ambiente”, defendeu o psiquiatra Thyago Antonelli Salgado, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), durante o Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado no Rio de Janeiro entre os dias 26 e 29 de junho.
“Se pensarmos nos primatas, humanos e não-humanos, com um comportamento de grupo, eles se protegeram contra a ameaça de predação, a escassez de recursos, e, assim, houve uma seleção natural desses indivíduos com a solidão e a manutenção da solidão ao longo da nossa evolução”, explicou. Hoje, porém, segundo especialistas, a solidão é mais prevalente e intensa do que nunca, e se configura como um grave problema de saúde pública.
Em um relatório dos EUA, publicado em 2023, intitulado Our Epidemic of Loneliness and Isolation (Nossa epidemia de solidão e isolamento, em tradução literal), Murthy destaca que essa condição está associada a um risco maior de doença cardiovascular, demência, derrame, depressão, ansiedade e morte prematura. “O impacto de estar socialmente desconectado na mortalidade é semelhante ao causado por fumar até 15 cigarros por dia”, escreveu ele.
Jair Mari, professor titular do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explicou que, para Cacioppo, o isolamento pode desajustar o organismo e produzir doenças. “Quando há a solidão, todo o sistema de defesa do organismo é ativado, como se estivesse encurralado”.
Por enquanto, as principais evidências não são capazes de cravar uma relação de causa e efeito (ou seja, ainda há incerteza se a solidão leva a essas condições ou o contrário). De qualquer forma, o crescente arcabouço científico tem deixado outros países em alerta. O Japão criou um “Ministério da Solidão”, e, no Reino Unido, uma secretária foi nomeada para combatê-la.
Como identificar o problema?
Durante o congresso, Salgado destacou que estamos falando sobre isolamento social, que significa uma redução na quantidade de interações sociais que uma pessoa pode ter. Ele pode ser objetivo — o sentido clássico —, como na pandemia, quando estivemos isolados, ou subjetivo, que é definido como solidão (loneliness, em inglês). “A pessoa pode estar rodeada por uma multidão e ainda assim se sentir só”, destaca.
Quanto a esse segundo estado, Mari pensa nele como uma assimetria. “É a discrepância entre as relações sociais que você tem e aquelas que você gostaria de ter. Então, existe um sentimento de exclusão social, de não pertencimento.”
Um ponto chave que envolve a solidão é exatamente o sofrimento. Afinal, a redução de interações pode ser feita com um objetivo maior, como autoconhecimento ou necessidade profissional (para escrever um livro, por exemplo), sem estar associada a alguma repercussão negativa. Nesse caso, falamos de solitude.
Interações superficiais
Se no passado a solidão nos ajudou a sobreviver, por que hoje ela nos adoece? Para os especialistas, isso tem a ver com a forma como temos respondido a esse estímulo.
Salgado avalia que essa expansão da prevalência da solidão tem como ponto de partida a Revolução Industrial, que lançou a Inglaterra como uma grande potência econômica. “As potências econômicas exercem também uma forte influência cultural nos outros países. E a Inglaterra é uma sociedade muito individualista.”
Somada a essa supervalorização da independência, a evolução tecnológica propiciou uma maior capacidade de sobrevivência sem que necessariamente estejamos dentro de um grupo específico. “Isso faz com que, muitas vezes, o indivíduo não suporte passar por frustrações. Então, ele está sempre volátil, sempre líquido, mudando de relação para relação”, diz Salgado.
“Se a gente comparar (a solidão) com a fome, precisamos ter um alimento que dá uma sustentação para diminuí-la. Atualmente, é como se a gente estivesse comendo alguns snacks (lanchinhos) nas redes sociais. A gente diminui a sensação de solidão ao ter uma interação, mas essa interação é muito superficial. O que acontece? Logo estamos com fome novamente”, completa.
Quando devo me preocupar?
Para entender se o isolamento social e/ou a solidão são um problema, é preciso avaliar o cenário no qual ocorrem, segundo Salgado. “Existem vários contextos geradores de solidão”, afirma.
Por exemplo: imagine alguém que se muda para uma cidade onde não conhece ninguém. A solidão será um estímulo para criar novas conexões sociais. “Quando a gente se preocupa? Se a solidão começa a fugir daquele contexto que a estimulou. A pessoa se muda, tenta fazer conexões e não consegue, ou consegue e, mesmo assim, se sente só.”
Ou seja, enquanto temporária, a solidão pode ser algo positivo, que ajuda a pessoa a se adaptar. A cronificação dela, porém, é um problema. Do ponto de vista individual, o que pode estar acontecendo?
Há algumas hipóteses. Uma delas é do psicólogo americano Cacioppo, citado no livro de Murthy. Ele aponta que a pessoa pode viver um estado de hipervigilância a ameaças sociais. Segundo Salgado, é como se capturassem mais informações que mostram que aquela relação social é um risco, e ignorassem sinais de que pode ser positiva.
“Elas começam a memorizar mais esses estímulos ruins e, muitas vezes, passam a ter comportamentos confirmatórios. Nada mais é do que se afastar de pessoas, tratá-las de uma maneira negativa, esperando que se aproximem ou provem que são merecedoras dessa relação”, explica.
Em risco
Durante o congresso, Salgado apresentou dados de uma pesquisa que ele coordena e que ainda não foram publicados. Eles começaram a avaliar 8 mil pacientes brasileiros durante a pandemia por meio de questionários online. Após dois anos de estudo, restaram 500. Eles observaram com atenção aqueles que no início da pesquisa não apresentavam solidão, mas, sim, ao final. Com isso, conseguiram identificar fatores de risco sociodemográficos, clínicos e de estilo de vida.
Os principais foram:
- Extremos de idade
- Ser mulher
- Ser homossexual
- Menor escolaridade
- Aumento de renda
- Relatar sintomas depressivos
- Relatar sintomas de ansiedade
- Uso abusivo de álcool
- Uso de cannabis (maconha)
Eles também encontraram os efeitos protetores. Para a surpresa deles, o mais importante foi a atividade física. “A gente acredita que a explicação é multifatorial. A atividade física possibilita a reunião de pessoas que têm um interesse em comum, e também ajuda na questão inflamatória do organismo. À medida que fazemos atividade física, ficamos mais tranquilos, há diminuição da ansiedade e uma melhora da depressão.”
Isso vai ao encontro das recomendações de especialistas disponíveis na “página do paciente” do site da respeitada revista científica Journal of the American Medical Association (JAMA). Em um material direcionado à população idosa, eles listam algumas maneiras de diminuir o isolamento social e a solidão:
- Programe um tempo diário para estar em contato com familiares, amigos ou vizinhos;
- Participe de eventos e programas em centros para idosos ou bibliotecas locais;
- Participe de aulas online, palestras e grupos sociais ou religiosos;
- Participe de aulas de exercícios em grupo;
- Seja voluntário em organizações locais;
- Participe de um grupo de apoio se estiver lidando com o luto pela perda de um ente querido;
- Converse com médicos sobre preocupações com isolamento social e solidão.
Salgado aponta, porém, que a solidão não pode ser tema abordado apenas na velhice. Para ele, a importância da conexão social precisa ser ensinada desde cedo. “Muitas vezes, a gente ensina as crianças que, mesmo sem fome, é importante comer para crescer forte. É preciso tomar água para se hidratar. Mas não falamos sobre a importância de ter boas conexões sociais para que haja uma maior qualidade de vida.”
Para ele, bons vínculos têm a ver com profundidade. Por isso, a dica dele para construir boas relações sociais é: “Pense que ela é uma troca. Preciso dar elementos sobre mim para a outra pessoa, mas preciso também receber bem os elementos dela.”
*O repórter viajou a convite do Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções